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Universidade Federal de Goiás
Sílvia Zanolla

Viver ou retroceder: o paradoxo da pandemia

Em 19/03/21 17:11. Atualizada em 19/03/21 17:17.

Artigo reflete sobre o que faremos diante do caos e da dor manifesta em tantas perdas

Sílvia Zanolla*

Silvia Zanolla

 

Mais uma triste e emblemática cena nos afronta pelos canais de comunicação nessa semana: no Piauí o corpo de um idoso morto estendido no chão. Ao seu lado, uma profissional da saúde sentada, vencida, em total tristeza e desolamento. A prova de que esta tentara salvá-lo está nos equipamentos, esparadrapos, pedaços de algodão e soro pelo chão ao lado do corpo. Fico pensando no quanto esse senhor sofreu até que parasse definitivamente de respirar, na dor de sua família, no sentimento de impotência e consternação dos profissionais que tentaram salvá-lo como heróis nessas condições. Impossível não condoer-se com tamanho sofrimento. Nesses momentos, somos um só na mesma dor: doentes, familiares, amigos, equipe hospitalar (dos médicos aos coletores do lixo). Projetamo-nos em solidariedade, como humanos que almejamos ser, contraditoriamente, em total condição de desamparo. A COVID não veio apenas para testar até que ponto estamos preparados para enfrentar a morte, ela veio para chacoalhar nosso conformismo em todos os sentidos. A pandemia é o nosso inimigo íntimo,  pesadelo frequente, cujo protagonista é um vírus que se metamorfoseia de modo letal e que pode se potencializar a qualquer momento, como se a confrontar nossa ilusão de obter qualquer espécie mínima de controle sobre a vida. 

Quando Freud em suas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1917), afirma categoricamente: “Não somos senhores de nossa própria casa”, se referia ao inconsciente, mas também ao fato que não controlamos sequer necessidades, desejos e comportamentos próprios. A COVID atualiza essa sensação de impotência diante da altaneira morte, e isso nos “empurra” para uma reflexão profunda. Nos perguntamos: o que faremos diante do caos e da dor intensa manifesta por tantas perdas? 

Não basta a revolta contra o descaso de um governo federal desumano como o que nos (des) assiste. Precisamos de ações concretas contra o uso arbitrário das instituições contra a vida. Poderiam alguns discordar, alegando que as autoridades se preocupam com a economia, a indústria e o consumo. E daí? O dinheiro importa mais do que vidas como a daquele senhor do Piauí? O que poderia justificar a falta de medidas de contenção às aglomerações letais, ou, o seu incentivo, partindo da própria autoridade maior do país? Não há resposta porque é incompreensível a qualquer pessoa verdadeiramente humana que se possa defender algo que se interponha à vida sob quaisquer circunstâncias civilizadas. Neste caso, a valorização da economia em detrimento da vida só pode manifestar uma coisa: barbárie, desumanização, autodestruição, prevalência do instinto de morte.

Por mais que isso seja um paradoxo, a COVID tem muito a nos ensinar. Desde mudar hábitos alimentares, valorizar pequenas coisas antes consideradas insignificantes, até lapidarmos a convivência, tanto presencial quanto virtual. Um vírus que nos testa na prática cotidiana, a exercitar em meio à dor a ética e a solidariedade de fato, em termos individuais e coletivos, sem subterfúgios. Isso faz emergir à tona comportamentos colaborativos ou individualistas, amorosos ou indiferentes. Um dos maiores ensinamentos da pandemia é exigir que mudemos completamente a visão acomodada sobre o conhecimento, a vida, a política, nós mesmos e o mundo. Quem não mudar agora inviabilizará a resiliência, se perderá no fluxo da história. Este é o momento de defender intransigentemente a vida, mesmo em meio à morte; a democracia, em meio à recessão; a ciência, em meio ao dogmatismo supersticioso e ignorante, que atrasa a emancipação humana, prevalecendo dominação social, econômica, religiosa e política. Essa dor refletida será o impulso da ação para a nossa resistência, a esperança e a homenagem aos que se foram. Devemos isso a estes milhares que perderam suas vidas, aos profissionais que estão lutando na linha de frente contra a morte e às gerações vindouras, se as queremos proteger em prol de um futuro digno. 

Silvia Rosa da Silva Zanolla é professora titular da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Educação-FE/UFG, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Violência, Infância, Diversidade e Arte (NEVIDA/FE/UFG).

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos, de inteira responsabilidade de seus autores

Fonte: Secom UFG

Categorias: Artigo FE