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Universidade Federal de Goiás

Avanços e desafios marcam a trajetória do serviço público no Brasil

Em 03/06/13 17:01. Atualizada em 24/11/14 14:13.

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Publicação da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Goiás 
ANO VII – Nº 58 – MAIO – 2013

Avanços e desafios marcam a trajetória do serviço público no Brasil

Texto: Michele Martins e Roberto Nunes | Fotos: Carlos Siqueira

A prestação de serviços públicos abrange setores essenciais para a sociedade. Nas diferentes esferas governamentais, seja municipal, estadual ou federal, a prestação desses serviços mobiliza milhares de trabalhadores, vistos como agentes de transformação a serviço da cidadania. Nos últimos anos, muitas vagas para servidores públicos foram criadas, mas a busca pela cobiçada estabilidade profissional requer muita dedicação.

Arquivaldo Bites Cleito Pereira e Vicente da Rocha Arquivaldo Bites, Cleito Pereira e Vicente da Rocha
Afinal, o que realmente significa a prestação de serviços públicos e qual a imagem que a sociedade brasileira faz dela, em especial em uma época de constante pressão sobre a administração pública, que requer, entre outras coisas, valorização da eficiência. De acordo com especialistas, a necessidade de se extinguir os cargos comissionados e a adequação de ferramentas de gestão equivalentes às da iniciativa privada estão entre os principais desafios para a melhoria dos serviços públicos prestados pelos governos.
Para discutir questões como a valorização da carreira, a política e a gestão de pessoal na administração pública, convidamos o superintendente regional do Ministério do Trabalho em Goiás, Arquivaldo Bites e os professores da UFG Cleito Pereira dos Santos, da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) e Vicente Soares da Rocha Ferreira, da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas (Face).

Qual o conceito de serviço público e de que forma a prestação de serviços públicos no Brasil se organiza historicamente?
Cleito dos Santos – O serviço público é caracterizado pela tentativa do estado em ofertar determinados serviços com o objetivo de atender necessidades básicas da população como: saúde, educação, transportes, entre outros. O serviço público no Brasil foi organizado de maneira precária ao longo de décadas. Tivemos de fato um serviço público articulado, em que os servidores chegam ao cargo por competência técnica, a partir dos anos 1980, com a instituição dos concursos públicos. Anteriormente, os critérios de admissão eram o parentesco e a amizade. É bom observar que, no caso brasileiro, isso é recente, posterior ao regime militar. E possibilitou a expansão do serviço público com a chegada de novos funcionários e a oferta de novos serviços.
Arquivaldo Bites – O concurso público não era obrigatório, então a maioria dos gestores acabavam optando pelo “quem indica (QI)". A obrigatoriedade do concurso foi um grande avanço da Constituição de 1988. Infelizmente, ainda ocorrem muitas nomeações em cargos temporários, em desacordo com a Constituição, especialmente em nível municipal, em prefeituras menores. Em âmbito federal, tem ocorrido efetivamente as contratações por concurso. Até mesmo quanto aos cargos de DAS (cargos de direção, chefia e assessoramento superiores que podem ser ocupados por servidores efetivos ou de fora dos quadros dos governos) a partir do governo do presidente Lula, foi estimulado que no mínimo 75% das vagas em cargos de DAS seriam preenchidos por servidores do próprio órgão. Hoje, mesmo havendo a indicação política do servidor, este tem de pertencer ao quadro efetivo. Isso contribui para a melhoria do serviço público. Notamos nos processos administrativos disciplinares, que a grande maioria dos que cometem desvios ou corrupção são pessoas fora do quadro efetivo. Por isso é de fundamental importância o estabelecimento de critérios objetivos e técnicos proporcionados pelos concursos públicos e a efetividade.


Qual o percentual de processos administrativos já registrados?
Arquivaldo Bites – Nós não temos um percentual atualizado. Mas em dados de 2012, a cada 100 servidores que foram demitidos por corrupção, 79 não pertenciam ao quadro efetivo de servidores e 21 eram efetivos.
Vicente Ferreira – Essa preocupação de profissionalização do serviço público no Brasil vem desde os anos 1930, com a estruturação do Departamento Administrativo do Serviço Público  (DASP). O debate sobre esse assunto tem passado por muitos momentos históricos importantes de reformas no serviço público. Mas sabemos que ainda existe a necessidade de avançarmos na prestação de serviços e, obviamente, precisamos de mão-de-obra qualificada para isso.

O Brasil e o mundo têm passado por grandes transformações socioeconômicas nos últimos anos. Quais foram os reflexos dessas mudanças para o serviço público no país?
Vicente Ferreira – Os usuários do sistema público hoje estão mais conscientes da necessidade de reivindicar a qualidade no serviço público. O estado brasileiro vem respondendo à essa demanda. Eu não sou otimista nem pessimista demais em relação à qualidade do serviço público. Ainda não resolvemos todos os problemas. Por exemplo, recebemos um relatório do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) mostrando que o serviço público brasileiro é mais produtivo do que o serviço do setor privado. Temos de saber avaliar essa informação, porque é difícil fazer uma comparação entre serviço público e serviço privado. Para analisarmos essa avaliação precisamos de microdados de dentro das organizações porque os serviços e os objetivos são diferentes. Mas do ponto de vista do impacto que tem causado as novas tecnologias, percebemos que temos profissionalizado mais o serviço público e adquirido novas ferramentas de gestão, como por exemplo, uma integração de sistemas estaduais ao governo federal que permite um maior controle da informação sobre as compras públicas, economia de gastos e mais transparência, pois existe grande preocupação sobre esses assuntos, foco de constante desconfiança por parte da sociedade. Hoje, esse sistema existe em vários estados brasileiros e foi discutido no Conselho de Secretários Estaduais de Administração (Consad), em Brasília. Poderíamos citar vários outros aspectos de mudança no serviço público. Muitos reclamam da importação de técnicas e ferramentas do serviço privado, mas temos efetivamente ferramentas adequadas que funcionam tanto no sistema privado quanto no público, com a diferença que o serviço público tem o objetivo de atender a sociedade e não o de obter o lucro.

Sob a perspectiva da sociologia do trabalho, que reflexos foram mais perceptíveis nessas mudanças que ocorreram no Brasil?
Cleito dos Santos – É a partir de 1988, com o início do processo de redemocratização, que vamos verificar uma racionalização intensa da administração pública. Hoje vivemos numa situação na qual os críticos do serviço público questionam o aumento dos gastos com a ampliação de seu raio de atendimento à população. Mas não é possível o Brasil continuar em uma posição de sexta ou sétima economia do mundo, possuindo uma população de miseráveis, sem acesso à saúde, à educação, que são serviços públicos. No ponto de vista da Sociologia, há várias questões que podemos observar tanto na transformação do trabalho no serviço público quanto nas consequências dessas transformações. O perfil do servidor público hoje é muito diferente de dez anos atrás. Por exemplo, no caso da universidade, que abre concursos para cargos de nível médio, muitas pessoas que concorrem já possuem nível superior e até pós-graduação, o que contribui para a melhoria do serviço público. Para operacionalizar e administrar as novas tecnologias é necessário um profissional com maior qualificação. Por outro lado, saindo do campo do trabalho para o campo da saúde, percebemos que essas mudanças também têm impacto na saúde do trabalhador. No serviço público também existe adoecimentos, assim como nas empresas privadas, em função das pressões que surgem com esse novo modelo de gestão. Foi feito um estudo no Tribunal do Rio Grande do Sul que mostrou que a partir da adoção de sistemas de administração e de gestão aplicados no setor privado, como por exemplo, a exigência do cumprimento de metas, os trabalhadores começaram a ter problemas de depressão, hipertensão, entre outros. Não adianta apenas falarmos que o serviço público expandiu e que os trabalhadores estão mais qualificados. Também há consequências que dizem respeito à saúde desse trabalhador.

Existem informações sobre o aumento do número de servidores públicos no Brasil?
Arquivaldo Bites – Passamos por um período de muitos anos, especialmente durante o governo do Fernando Henrique Cardoso, que configurou um verdadeiro desmonte do serviço público. Então, na realidade a maioria dos concursos que ocorreram até então são de reposição de pessoal, não é nem de aumento de servidores. Para citar um exemplo, especialmente em Goiás, estamos com déficit de auditores fiscais. Hoje contamos com 86 auditores fiscais e precisaríamos de 161, praticamente o dobro.

Considerando a facilidade de criação de cargos comissionados, com salários altos, que tipo de ferramentas de gestão têm sido adotadas pela administração pública para contornar esse problema?
Vicente Ferreira – Existe a dificuldade de discutir sobre política e gestão para encontrarmos um equilíbrio entre ambas, pois há quem defenda a politização da gestão e há o gerenciamento da política. Em um processo democrático, existe a rotatividade de governos. As mudanças e as dificuldades em cargos de livre nomeação são da natureza da democracia. Dentro da democracia é natural que exista a alternância de poder e isso traz a preocupação para os funcionários estáveis do estado. Não podemos esquecer que, independentemente do cargo ou do modelo de gestão, temos que profissionalizar a gestão pública. Essa tentativa é histórica e não podemos fugir disso. Não acho que está sobrando gente no serviço público ou que ele esteja inchado, de forma alguma. Também não acho que são as novas ferramentas que estão causando estresse. Acho que isso se dá pelo momento histórico no qual vivemos. Talvez seja um problema de política, de visão a curto prazo, ou talvez seja um problema de desconhecimento. Mas não há como não pensarmos estrategicamente o planejamento com uma visão de curto, médio e longo prazo, senão faremos arranjos administrativos que não têm sustentação. O planejamento ainda é incipiente na administração pública brasileira. São poucos os bons exemplos que temos, porque falta pensarmos o serviço público para o público e não para quem está dentro da burocracia. O burocrata, geralmente tem um pensamento de autossustentação ou manutenção da sua condição. O serviço público existe para prestar serviços para a comunidade. Sempre olhei com cuidado para a transferência de determinadas ferramentas do setor privado para o setor público, mas não podemos desconhecer que os avanços tecnológicos estão permitindo isso. Modelos de gestão bem-sucedidos e a pressão da sociedade por mais transparência estão permitindo a economia de gastos públicos. Acho que existe realmente uma preocupação dos profissionais de gestão pública em melhorar a qualidade do serviço público. O que dá retorno político a longo prazo são as políticas de valorização do serviço público como o governo federal vem fazendo.
Arquivaldo Bites – No meu entendimento, é grande a quantidade de pessoas que trabalham em órgãos públicos de forma terceirizada. Isso para mim é uma ilegalidade, pois a Constituição diz que não pode. “Volta e meia” o governo tem enviado projetos ao Congresso Nacional para a constituição de cargos efetivos. Temos de pressionar o governo de todas as formas para que ele efetivamente consiga abrir as vagas e realizar os concursos públicos, a fim de melhorar os serviços à população no Brasil.

Como as novas tecnologias têm impactado o serviço público?
Cleito dos Santos – As novas tecnologias já estão dentro das nossas casas e espalhadas na sociedade qualquer que seja o setor. O que se discute quanto a saúde do trabalhador é que os usos dessa tecnologias são diferentes, dependendo de cada setor. A tecnologia não é neutra e o uso da tecnologia se dá por opções políticas. A reforma política do Bresser Pereira nos anos 1990 não foi só uma reforma que procurou colocar um programa em prática. Foi muito mais do que isso, porque fez chegar até o estado modelos de gestão como os das escolas de economia e negócio dos Estados Unidos. A Escola Superior de Formação do Servidor (Enap) oferecia cursos para os gestores em Brasília e esses cursos eram dados em inglês, pois os professores eram dos Estados Unidos. Temos verificado, por meio de pesquisas, que a medida em que as pessoas são pressionadas no setor privado, elas começam a desenvolver diversos tipos de doenças ligadas ao trabalho. Quando esses modelos chegam ao serviço público, esses servidores também são pressionados. A instituição estatal vai muito além das propostas de um governo. Podemos observar que determinadas práticas que foram colocadas no governo do FHC, com a gestão do Bresser Pereira, permanecem. No entanto, outras questões podem ser colocadas. Temos de ter um olhar crítico sobre o serviço público que está sendo oferecido, pois, mesmo que ele tenha melhorado significativamente, ainda temos falhas, o que é perfeitamente normal. O serviço público tem falhas assim como o serviço privado. Verificamos, por exemplo, a maneira precária que tem se dado a expansão do ensino superior. Mesmo com o crescimento do ponto de vista físico, do ponto de vista tecnológico, deixa a desejar. Existem salas que não tem o data show ou a internet não funciona. É preciso fazer com que a população que não tem acesso às universidades chegue até lá. No último vestibular da UFG, mais de 800 vagas ficaram ociosas, por vários motivos, mas é preciso pensar de forma estratégica para evitar que esses problemas venham a colocar em cheque a própria universidade. No serviço público estadual, ou municipal a situação é mais grave ainda em comparação ao serviço público federal. O SUS, por exemplo, é um projeto maravilhoso destinado a atender todo e qualquer indivíduo que necessite de atendimento médico, mas na realidade o sistema não funciona. Gostaria de reforçar a ideia que não se pode tratar o serviço público como uma coisa homogênea, porque ele reflete as contradições presentes na sociedade. A Justiça brasileira, por exemplo, é completamente elitista. Vários estudos mostram como a Justiça julga diferentemente os ricos e os pobres, os negros e os brancos, os homens e as mulheres. Na Justiça temos altos funcionários públicos, altamente qualificados, como juízes, promotores, defensoria pública, técnicos e esse pessoal vive “encastelado”.  Trata-se de um serviço público no qual a população não tem acesso. A sociedade tem de enfrentar isso exigindo que os tribunais sejam democratizados.

Qual a maior dificuldade para a superação desses problemas levando em consideração a complexidade do estado, questões históricas e políticas?
Cleito dos Santos – Há muitas contradições no serviço público. O serviço público federal é totalmente diferente do serviço público em âmbito estadual e municipal. Em termos de qualificação, há um abismo entre os servidores públicos federais e os municipais. E isso é um problema sério quando pensamos na totalidade do sistema. Outro ponto que deve ser discutido é o papel da sociedade civil nesse processo. A sociedade cobra pouco seus direitos.  Enquanto a sociedade civil não prestar atenção, cobrar e exigir mais qualidade de serviços públicos das instituições públicas, não veremos melhora significativa. Mas, isso já começa a ocorrer. Vamos pensar no sistema de saúde, é um absurdo, as pessoas estão morrendo, sem assistência à saúde. Quem não paga plano de saúde “tá enrolado”,  e aí a população sofre porque ninguém dá muita atenção. Mas temos outro elemento que eu acho fundamental e que está arraigado na sociedade brasileira, que é a corrupção. A corrupção faz com que muito dinheiro saia pelo ralo, dinheiro que não chega à população.

O que pode ser feito para além da cobrança da população e de uma legislação em relação à corrupção de servidores?
Arquivaldo Bites – Acredito que a legislação acaba permitindo a corrupção e que a Lei de Licitação parece ser um chamarisco para isso. Precisa haver uma mudança na legislação, e mais do que isso, trata-se de uma questão da dignidade. Infelizmente há pessoas que vão para o serviço público para se aproveitar financeiramente. Felizmente, a cada cinco processos, apenas um envolve servidores efetivos, quatro são de fora, o que significa que até a questão do ingresso no serviço público interfere nas relações, no desempenho das pessoas. Há uma campanha na mídia que precisa mudar o foco, tem muita falsidade em pessoas que defendem essa campanha. Vemos alguns políticos e meios de comunicação fazendo essa campanha contra a corrupção, sendo que eles são responsáveis pela corrupção. Se o governo paga a mídia, esta favorece o governo. Senão, ela dá notícia contrária. Eu vou pegar um exemplo pequeno, mas que pode ser estendido: um apresentador de TV local, falava mal do prefeito anterior na época da campanha. O prefeito que ele apoiou ganhou as eleições. Ficamos sabendo que era uma jogada e agora o prefeito está pagando para eles falarem bem da prefeitura. Isso é comum por parte da imprensa. Isso é corrupção da mesma forma.

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